A Pessoa de Jesus Cristo

Pe. Samuel Garcia de Morais[1]

samoraisnet@gmail.com

 

A disciplina teológica que estuda a pessoa de Jesus é a cristologia. Objetiva refletir e compreender à luz dos Evangelhos o Jesus histórico, verbo encarnado, Servo de Deus. Jesus Cristo, o Filho de Deus humanizado. “Assim a Cristologia deve considerar e conhecer o Jesus ‘histórico’, pois nossa fé se concentra num homem concreto, verdadeiro, que existiu historicamente. Mas sempre será mais que isso: será afirmar algo sobre Jesus”. (SOLANO, 2013, p.3). Assim sendo, a frase de Gesché é um verdadeiro adágio teológico: “A cristologia tem por dever ser teologia e antropologia antes de ser cristologia” (Gesché, p. 18, citado por SOLANO, 2013, p. 3).

A cristologia quer oferecer subsídios para o esclarecimento da fé cristã. Ela não quer falar sobre Jesus, mas a partir de Jesus. Quem ele era, o que ele queria?

 

Servindo-nos da linguagem própria do âmbito das categorias gramaticais, poderíamos utilizar a seguinte comparação: ‘Jesus Cristo’ constitui o resultado da união entre um substantivo e um adjetivo. ‘Jesus’, na qualidade de substantivo, designa então a concreta identidade e, portanto, a singularidade do personagem histórico, enquanto o adjetivo ‘Cristo’ constitui um título que se refere à confissão de fé relativa ao significado salvífico do personagem histórico Jesus de Nazaré. (TAVARES, 2007, p. 75).

 

Este breve artigo sobre a pessoa de Jesus é bem limitado, por isso a dificuldade de apresentar longas discussões sobre a figura do filho do Carpinteiro. Ao longo da história da Igreja muitas teorias foram sendo assimiladas e muitas delas contrárias a fé e a Revelação bíblica. A partir de uma tradução cultural da palavra “carne”, o versículo do capítulo primeiro de São João “a Palavra se fez carne” teve muitas interpretações que agrupamos em 3 grandes teorias:

1ª TEORIA – Acentua a DIVINDADE DE JESUS. Para esta teoria, Jesus é apenas e tão somente Deus. Na Encarnação, Deus apenas utiliza a natureza humana de Jesus de Nazaré. A humanidade de Jesus é apenas uma aparência.

2ª TEORIA – Acentua a HUMANIDADE DE JESUS. Esta teoria diz que Jesus é apenas homem. A Ressurreição de Jesus de Nazaré é apenas sua elevação ao estágio divino. Sendo assim, é homem dependente de Deus. Jesus é Filho adotivo de Deus, semelhante a Ele, mas não é Deus.

3ª TEORIA – Acentua a existência de DOIS SERES DISTINTOS EM JESUS. Nesta teoria, em Jesus coexistem duas naturezas, a natureza humana e a natureza divina, todavia elas não se misturam. Para os defensores desta teoria, em Jesus há duas pessoas e duas naturezas. O principal deles foi Nestório que afirmava que Maria só é mãe do homem Jesus, mas não é mãe de Deus.

Essas teorias estão ainda presentes no Cristianismo. No entanto, nem uma delas caracteriza o Mistério Cristão digno de Fé. O Mistério da Pessoa de Jesus consiste na afirmativa rezada no Credo Niceno-Constantinopolitano: Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Não entraremos aqui no mérito das discussões para a chegada desta conclusão cristológica.

Todavia, vale ressaltar que o acervo mais importante para o conhecimento da Pessoa de Jesus é a via do encontro com as Sagradas Escrituras. Ela é fundamental para aprofundar na Revelação do Filho de Deus, o Salvador da humanidade, o Messias esperado. A expressão “Jesus Cristo” é completa em si mesmo, contempla o que a sabedoria do Concílio de Calcedônia (451 d.C.)  definiu: ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Essa afirmação, por mais simples que seja, ainda resiste muita dificuldade na articulação entre a pessoa humana e divina de Jesus. Existe uma insistência enorme e dualista de separar o divino do humano. “Em Jesus transparece de modo claro que divino e humano não se opõem, mas se potencializam reciprocamente. Que só é realmente divino o que for também profundamente humano”. (TAVARES, 2007, p. 9).

Isto posto, a imagem verdadeira de Deus revelada por Jesus é humano. E em Jesus e por Jesus a imagem do homem que se emerge é divino. O mistério da Encarnação do Verbo é a plenificação da manifestação gloriosa de Deus e a plenitude da manifestação do homem. (BOFF, 2014).

 Na anunciação, o Anjo diz a Maria “eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus” (Lucas 1,31). “O nome Jesus (Jeshua) significa ‘o Senhor (YHWH) é salvação’. O mensageiro de Deus, que em sonhos fala a José, esclarece em que consiste essa salvação: ‘Ele salvará o seu povo dos seus pecados’”. (RATZINGER, 2016, p. 41-42).

 Na verdade, desde o nascimento de Jesus, é crucial a mudança de valores e atitudes em relação ao messianismo esperado. O nascimento em Belém, a crucificação, a pregação aos pagãos, a refeição com os pecadores, entre outros exemplos, demostram como a comunidade primitiva contemplava a pessoa de Jesus. “Jesus não pertence àquele ambiente que, aos olhos do mundo, é importante e poderoso; e, contudo, é precisamente esse homem irrelevante e sem poder que Se revela como o verdadeiramente poderoso, como Aquele de quem, no final das contas, tudo depende”. (RATZINGER, 2016, p. 59-60).

A caminhada de Jesus conforme pregação dos apóstolos, os seguidores do caminho, é uma ruptura total com a religiosidade da época. “Eu não vim para abolir a Lei, mas dar-lhe pleno cumprimento” (MT 5, 17-19).  Todavia, convém mencionar que “Jesus de Nazaré foi um Judeu e que viveu sua vocação no interior do Judaísmo palestinense” (RUBIO, 2013, p. 31).

Em grandes linhas, Jesus viveu grande parte de sua vida entre a Galileia, a Judeia e a Samaria. Porção muito pequena de terras, aproximadamente 20 mil quilômetros quadrados em média. Conviveu com a discriminação judaica dos galileus e samaritanos. Para os judeus, os galileus eram gente ignorantes e os samaritanos eram impuros. Sobre Jesus e o judaísmo, é importante a distinção entre os vários grupos políticos-religiosos existentes em Israel. (BÍBLIA PASTORAL, 2006)

Os privilegiados do Reino de Deus são os pobres, crianças, pequenos e pecadores. Ninguém é merecedor por si mesmo do Reino de Deus, apesar de boas obras religiosas e até mesmo da vivência escrupulosa da Lei (atitude farisaica). “Para Jesus, ninguém é sadio e justo. Por isso, o primeiro passo para receber o dom do Reino de Deus é reconhecer essa realidade, aplicando-a à própria vida”. (RUBIO, 2013, p. 39).

Destacamos aqui, para melhor compreensão da importância da categoria Reino de Deus, o Sermão da Montanha (Cf. Mt 5,3-12). As bem-aventuranças são, em grandes linhas, um retrato biográfico de Jesus, o Cristo. De tal modo que “exige discipulado e só pode ser verdadeiramente entendido e vivido seguindo-se Jesus, caminhando-se com Ele” (RATZINGER, 2016, p. 75).

A proposta de Jesus de Nazaré sobre o Reino de Deus, o messianismo, é esperada e desejada pelo povo e seus discípulos, todavia enfrenta graves crises e desilusões. O reino de Deus revela-se no amor-serviço, no cuidado com os mais marginalizados, na fraqueza da Cruz. A multidão espera outro tipo de messianismo. Jesus é totalmente contra essa ideia e muitos o abandonam (Cf. Jo 6,66). (RUBIO, 2013, p. 59).

 

A atitude que Jesus assume para com a própria morte é surpreendente por ser inusitada. Frente à morte violenta, Jesus não se rebela, nem se revolta. Nem sequer se comporta com resignado, que, impassível, marcha em direção ao patíbulo. (…). Ele assume, portanto, a morte como uma espécie de coroamento de sua existência”. (TAVARES, 2007, p. 41).

 

            A atitude de Jesus é humanizadora em todas as suas balizas. Supera uma revisão reducionista da Cruz, do sofrimento: ele não um sadomasoquista. Ele vive e atualiza o memorial da Graça de Deus, a novidade surpreendente que é o Reino de Deus. Com seus gestos, palavras e ações desmascara as atitudes hipócritas e legalistas da confiança irrestrita numa religiosidade frágil, apegada a normas que não transformam o interior. “A liberdade de Jesus, o servidor, é vivida em comunhão com o Pai e no amor-serviço solidário com os homens, mulheres e crianças concretos, especialmente os mais excluídos. Trata-se de um amor que cura a pessoa, que a liberta para que possa viver a liberdade.” (RUBIO, 2013, p. 61).

            Por fim, é necessário clareza para escrever sobre a Pessoa de Jesus. Muitos autores ajudam compreender melhor quem Ele era e o que Ele queria. Todavia, a fonte principal e mais autêntica é sempre o encontro com Ele na Palavra de Deus. Mas, quero destacar dois autores para estudo pessoal:

 

Referências

ALVES, Carlos Eduardo Cavalcanti. A Cristologia segundo Oscar Cullman. Disponível em: <ACRISTOLOGIASEGUNDOOSCARCULLMAN-with-cover-page-v2.pdf (d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net)>. Acesso em: 10 de julho de 2022.

BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador: ensaio de Cristologia crítica para nosso tempo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.

DE JERUSALÉM, Bíblia. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.

DE PASTORAL. Bíblia. Edição colorida. São Paulo: Paulos, 2020.

LUCIANI, Rafael. Cristologia. Theologica Latino Americana. 2022. Disponível em: <http://teologicalatinoamericana.com/?p=1464>. Acesso em: 10 de setembro 2022.

PAGOLA, José Antônio. Jesus: aproximação histórica. Trad. Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: do batismo no Jordão à transfiguração. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2016.

RUBIO, Alfonso García. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para nossos dias. São Paulo: Paulinas, 2014.

______. Cristologia. Curso de Iniciação Teológica à distância – PUC-Rio. Departamento de Teologia. Rio de Janeiro: Comunicação impressa, 2013.  

SOLANO, Jorge Solano Garcia de Moraes. Cristologia. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://docplayer.com.br/22993814-Apostila-do-curso-de-introducao-a-cristologia-jorge-solano-garcia-de-moraes.html>.  Acesso em: 15 de agosto de 2022.

TAVARES, Sinivaldo S. Jesus, parábola de Deus: cristologia narrativa.  Petrópolis: Vozes,2007.

[1] Presbítero Católico da Diocese de Caratinga, MG. Graduado em Teologia pelo Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário, SDNSR (2017). Pós-graduado em Ciência da Religião pela Faculdade Venda Nova do Imigrante, FAVENI. (2019).